Licio Hernanes Bezerra

derradeira
homem vivo
matemática do coração
onde está minha gata?
tristeza III
janelas
psiu!
ser 
vozes atrozes
tempos de paz
esperança
águia
e o lenço levou ...
preferindo os mosquitos
ao avesso
humor de lua
na estrada
espuma do rancor
mulher louca na chuva
Horror dos dias iguais  

derradeira

quando eu vi nos seus olhos
que você ia embora
discretamente
segurei os seus seios com os dentes
pelo menos alguma carne ficaria
 

homem vivo

viva
em mim
uma mulher morta
talvez assim
renasça
uma mulher linda
e fique eu
um homem vivo
 

matemática do coração

2 pessoas brigando
e os corações cansados
se olhando meigamente

2 pessoas abraçadas
e os corações apáticos

1 pessoa indo embora
e o coração da outra tomando fôlego

1 mulher apertando o coração do homem com os peitos

2 homens se olhando
e os corações de cada um
se olhando avidamente entre grades

1 homem olhando a paisagem
e o coração tranqüilo

1 homem com o coração tapando os olhos
prestes a cair num abismo

1 casal de amigos com os corações sorridentes

1 abraço com os corações também abraçados
 

onde está minha gata?

ela saiu ontem à noite
curiosa por novidades
fiquei preocupado
ela tem perigosas peculiaridades
como aproximar-se de estranhos
decididamente
essa gata é de uma época de mais civilidade
de mais ternura
espero que ela tenha encontrado uma fada
ou um anjo
quero confiar que ternos seres
encontram sua eternidade no mundo bom de deus
não nas garras imorais da morte violenta
do horroroso mundo do mesmo deus
não quero sonhar com cães estraçalhando
homens apedrejando
mulheres envenenando
a minha linda gata
ontem falei com ela
vislumbrei-a perto da gamela de ração
antes de eu também sair à noite
para rezar
 

tristeza III

em dias de chuva
apareces cinza
em dias de sol
te escondes na minha voz
quando cantamos sós
um tango brando
desejando, suplicando
um abraço de pai
um beijo de mãe
imaginados num sorriso
num afago
num beijo vago
de um encontro
 

janelas

esse mistério do mundo
essa grande viagem pelo espaço dos sentimentos
quanto mais profundos mais a viagem leva tempo
e quando chega naquela lava quente
aquele magma macio e poderoso
frágil e assustador
um suspiro torna-se o vento detonador
do estremecimento das montanhas do peito
da torre dessa cidade que se chama eu
e os faróis que iluminam nosso ser
são inúteis na neblina
e na chuva torrencial
isolado o motorista ao volante
desesperado acende um cigarro
quando fuma
como se guiar no meio da bruma ?
as águas afogando
atolado
no escuro
vidros fechados
abafado
chora lá dentro e lá fora
e agora ?
esperando o fim se aquieta
e quando o fim não vem
e pouco a pouco a chuva estia
e por grande sorte o sol ilumina o dia
abre as janelas
os vidros perdem o embaçado
sacode as gotas dos cabelos
olha a cor da paisagem
e reinicia a viagem
 

psiu !

fui
psiu aqui
psiu acolá
fui-me no psiu
de todo mundo
psiu nos ouvidos
psiu na nuca
grande delícia
psiu nas pernas
sexo
psiu da humanidade
da multidão
ouvi milhares
sibilantes ou não
com gestos ou não
descarados
grandes
psius do meu corpo
dos meus sentimentos
que quando muito atento
descobre
que até o pensamento
tem seu próprio lugar
p'ra morar
psiu !
 

ser

andar belo
como um vôo de gaivota
atento
não cair do vôo
não tropeçar
os braços alçam o espaço
as pernas avançam na terra
o corpo todo anda
é tão difícil estar em meu centro
é tão difícil calar as vozes internas
superpostas
essa multidão dentro de mim
esses homens e mulheres
essas crianças e velhos
esses animais
minerais
essas plantas
todos querem sua vez
e a passagem é tão estreita
que às vezes sai um
aos tropeções
no meio do palco
aturdido
desequilibrado
assustado
tímido

ser
eis a resposta
 

vozes atrozes

essas vozes
que não querem me deixar
sentir o vento
que me impedem de gostar do outro
simplesmente
que me fazem sentir
rei
pobre
triste
dedo em riste
que me oprimem
reprimem
minam
dentro de mim
essas vozes atrozes
devem morrer
 

tempos de paz

taças de champanhe
vidros quebrados
paz
chamego, cafuné
cabelos arrancados
paz
jantar à luz de velas
indigestão
paz
risos desbragados
lagrimas frias ao vento
paz
palavras sábias
discussão
paz
amor
sexo a serviço
paz
 

esperança

quem me disse
que eu não vou conseguir alguém
que me ame e me respeite
até o fim dos nossos dias
tem razão nesse dia D
em que as baionetas do tempo
apontam infinitamente para mim

eu quero pertencer
à corrente do mundo

como cachorro, lambo os pés do meu dono
como gato, olho imensamente o fundo dos seus olhos
como pássaro, canto solitário por amor
como homem, reclamo a deus a injustiça do coração

espero então
nervosamente
o fim desse dia
talvez amanhã ...
uma nova visão
 

águia

troca de plumagem
águia
vai ser ave estranha
por um tempo
talvez voltes a voar
mais alto do que antes
desce das montanhas
voa baixo
sem ser à cata de alimento
mostra teu bico
tuas garras
tuas asas fortes
 

e o lenço levou ...

o choro acabou
o nariz escorrendo arrastou
para longe você
que pensou me esquecer
mas o lenço enxugou
o nariz escorrendo
e secou você
 

preferindo os mosquitos

e o beijo
que você não quer dar
e o teu corpo
que não quer se entregar
eu voltei
a perturbar você com os meus desejos
o meu beijo fora de hora
quando eu quis
e eu não segurei o meu impulso
e pedi para dividir contigo
o cobertor, o calor
com um velho amigo
você não quis
e fingiu dormir comigo um pouco
e depois saiu durante a noite
feito um louco
foi deitar na sala com os mosquitos
deixando de manhã
meu corpo todo a soluçar
de solidão, de abandono
um cão sem dono
um coração batendo brabo
sozinho na paixão

meu amor
eu pergunto se é sadio
teu amor
é fugaz como em um animal em cio
 

ao avesso

como os meus olhos revelam amor
você faz planos de voar
por essas mulheres casadas
em desamor
você quer um par normal
para depois na cama
mostrar-se ao avesso
 

humor de lua

falar contigo
é tão difícil
depois do amor
é quase um míssil
que precipício
existe entre nós
depois do prazer
de um dia a sós
o amor
por favor
no medo não dilua
 

na estrada

novamente estou eu
à beira da estrada
pedindo morada
às estrelas da noite
novamente o açoite do vento
apagando as pegadas
não há ninguém a seguir
todo lugar é lugar
e por todas as formas de amor
eu tenho que passar
novamente sou eu
a declarar
que a única pessoa que tenho
sou eu
 

espuma do rancor

não precisava ter ouvido aquilo
a visão não importava
viajaria por um túnel do tempo
até o último acontecimento de mesmo matiz
afinal tudo começa e recomeça infinitamente
enquanto no fundo do peito
a onda atinge as pedras
e a espuma do tancor se espalha

nada será como antes
o retorno à casa é melancólico
um fruto foi mordido
e a ferida oxida com o passar das horas
a poeira do tempo agarrou-se aos pés
um fio de cabelo desgarrou-se ...
 

mulher louca na chuva

tarde nas ruas escuras
nas pedras manchadas
aqui e ali marcas de sangue
e pequenas poças d'água
em todo lugar
a poeira preta dos automóveis
o brilho enferrujado das latas

a vagar uma louca
com as vestes rasgadas
um grande véu desbotado
uma gota suja desprende-se
e cai pelos lados do nariz
o céu está cinza
os olhares se aprofundam
uma poça distorce uma imagem
da boca de um modelo fotográfico

explosão única: a louca risca um fósforo
 

Horror dos dias iguais

Sinto o teu horror dos dias iguais
Por que não crês no que te digo?
Eles parecem repetitivos
porque tu te frustras em urdir
o presente com teus desejos
e pouco experimentas o que o mundo te apresenta
Por que tu te esqueces dos teus filhos?
Por que não vês nos meus olhos
o desespero pela tua destruição?

A minha boca tem o gosto do teu cigarro
invasor do espaço das nossas almas em regozijo
O vinho que bebemos não foi para teu deleite
foi para te trazer à vida dos teus desvarios
como um choque elétrico
Por que desafias o teu amigo
a te proteger do mal que o mal reproduz?
Por que não encaras a sorte
como mais uma chance de ter o amor
como uma roupa justa ao corpo
e podermos, eu e tu, vesti-la?